22 outubro 2003

Crueldade intolerável

Não, não vou falar do filme dos irmãos Cohen que deve estar prestes a estrear em Portugal. Vou falar do caso horrendo da morte de mais uma criança devido a maus tratos. Desde domingo, quando ouvi a notícia pela primeira vez, que pondero se deva ou não escrever qualquer coisa. Já muito se escreveu e muito mais se disse, não apenas sobre esta menina de 30 meses que nunca foi amada nem sequer desejada, mas sobre outros casos, perdão, outras crianças - sim, porque uma criança não é nem pode nunca tornar-se apenas num mero "caso" - que, a um ritmo assustador, vêm a lume e nos revelam os monstros que vivem entre nós e passam despercebidos no dia a dia.

No entanto, e por estranho que pareça, quanto mais se fala sobre pedofilia, maus tratos e total desrespeito e desamor pelas crianças, menos coisas acontecem no sentido de prevenir e punir os agressores. Se calhar, não se está a falar o suficiente. Se calhar, Buda tinha razão e as palavras podem mesmo mudar o mundo, mas quando deixamos as nossas palavras para os outros ou simplesmente as calamos porque achamos que nada temos a acrescentar a tudo o que já foi dito, estamos a fazer com que o mundo pare ou ande mais devagar.

Na verdade não tenho nada a acrescentar sobre esta notícia. Lamento profundamente a morte desta criança, lamento ainda mais a vida que lhe deram. Imagino o seu olhar, que todos quantos a conheciam diziam ser triste. Não consigo imaginar a dor por que terá passado, digo dor em vez de dores, porque imagino a sua vida como uma única dor, imensa, compacta e sufocante. Não sinto pena da mãe, muito menos do pai e da madrasta, não sinto pena de mais ninguém. Só dela, a quem deram a oportunidade de vir ao mundo, mas negaram a de viver.

Não posso dizer nada de novo, nada que já não tenha sido dito. Não encontro soluções mágicas, mas não quis deixar de falar porque se as nossas palavras não podem fazer milagres, podem pelo menos servir para reforçar uma ideia, um protesto, um pedido ou uma exigência. Duas vozes consonantes chegam mais longe do que uma.

Por favor não se calem, não pensem que não vale a pena ou que é de mau gosto falar destas coisas até à exaustão. Lembrem-se de que muitas crianças abusadas e maltratadas nem sequer falam ainda e podemos ser nós as únicas vozes que as defendem. Falem, gritem, o mais alto que possam porque talvez quando as vozes e os gritos se tornarem intoleráveis para quem está mais perto do poder no sentido institucional da palavra, alguma coisa se faça no sentido de salvaguardar as nossas crianças acima de tudo.

Não tenho filhos. Não sei se chegarei a tê-los. Por isso, estas crianças a quem já chamam os meninos de ninguém, serão os meus filhos. Adoptem-nos também!