03 janeiro 2004

Contar as bençãos

De repente parece que ficou tudo às escuras. Os livros, a música, os filmes, as conversas, as pessoas, todos mergulhados em tristeza. E tudo o que tenta fugir à escuridão não tem interesse, é superficial e ôco. Em contrapartida, quanto mais deprimentes forem os conteúdos, mais profundos, mais interessantes, mais atraentes se tornam. Um destes dias, a felicidade vai pagar imposto ou ser considerada atentado ao pudor de quem tira prazer em viver com a lágrima fácil e o lamento ao canto da boca.

Dizem que o país está em crise e que os portugueses andam deprimidos. Não duvido que existam boas razões para tal – como já disse há algum tempo, o facto de não ter preferências políticas não quer dizer que não tenha convicções sociais e que não leia jornais ou veja noticiários – mas quer-me parecer que a nossa tão celebrada natureza de povo melancólico e saudosista, eternamente de braços caídos e ombros curvados, sempre à espera de milagres e a morrer na praia, a alimentar o ego nacional de vitórias passadas (que a maioria, infelizmente, nem sequer se dá ao trabalho de tentar conhecer melhor, mas esta é outra história), não nos está propriamente a ajudar.

Concordo que todos nós teremos muita coisa a lamentar e não sou tão tonta que não tenha consciência de que atravessamos tempos difíceis sob muitos aspectos, mas acredito que temos também muitas coisas pelas quais devemos estar gratos e deambulamos vida fora sem lhes dar o devido valor, sem ter sequer a noção de que elas existem, fazem parte de nós e estão ali, à mão de semear, prontas a serem vividas.

Hoje, por nenhum motivo em especial, decidi contar as minha bençãos. Não me estou a exibir ou a vangloriar de grandes feitos, até porque a única coisa que a minha vida terá de especial é o facto de ser a minha vida, o que faz com que eu diga, alto e bom som a quem me quiser ouvir, que, mesmo que pudesse fazê-lo, não a trocaria por outra vida qualquer.

Estou viva e tenho saúde. Tenho os meus pais vivos e perto de mim. Conto com o seu total apoio e amor incondicional. Tenho os meus sobrinhos que ainda querem o meu colo e me abraçam com força sempre que me vêem. Tenho o meu Abade e tive a sorte de encontrar o amor com ele. Não estou a falar do sentimento piegas e açucarado que alguns apregoam, e que, qual bola de algodão doce, depressa se saboreia e se dissolve, mas de um sentimento sólido, inteiro, feito de malhas apertadas de dor e insegurança que se entrelaçam com outras de paixão e cumplicidade e me fazem sentir feliz por tê-lo conhecido. Tenho os amigos e, sobretudo, vejo confirmadas todos os dias as razões pelas quais entraram e fazem parte da minha vida.

Noutro plano, tenho o meu trabalho, estável, seguro, digno, numa instituição que tem sobrevivido a tendências e questiúnculas políticas sempre com dignidade e sem prejuízo do excelente serviço que presta ao país, da qual me orgulho de fazer parte e cuja camisola visto sem qualquer reserva, até porque não seria capaz de me vender e de trabalhar em projectos nos quais não acreditasse. Tenho a oportunidade de estudar História e fazer investigação - ou seja, tudo o que sempre quis. Não sou rica, não ganho fortunas, mas sinto-me bem e realizada profissionalmente.

Sou um poço de defeitos - mas tenho também consciência das minhas virtudes. Cometo erros como toda a gente e sou, muitas vezes, precipitada nas minhas decisões - mas tento corrigir os primeiros e assumir as consequências das segundas como responsabilidades minhas. Sou frequentemente injusta e tiro conclusões precipitadas - mas não tenho vergonha de pedir desculpas por isso.

Não sei escrever literatura e muito menos poesia – mas sei ler. Não sei pintar, desenhar ou esculpir – mas sei ver. Não sei ler música nem tocar qualquer instrumento – mas sei ouvir. Nunca descobrirei a cura para o cancro, mas serei a primeira a aplaudi-la no dia em que chegar – e não tenho quaisquer dúvidas de que chegará.

E pronto, esta sou eu e a ma petite existence. Tenho uma vida simples, mas também não me parece que a da maioria das pessoas seja propriamente um épico, feito de grandes momentos, até porque o coração humano não suportaria vinte e quatro horas diárias de emoções fortes.

A melhor coisa do mundo para mim é poder dizer, com plena convicção, que sou uma pessoa feliz.