16 janeiro 2004

Manifesto

Parece que alguns portugueses estão empenhados em que haja novo referendo sobre o aborto. Eu também gostaria que houvesse, mas, desta vez, espero que, à última hora, as pessoas não desistam de expressar a sua vontade só porque o dia escolhido para o referendo é um Domingo de Junho, que convida mais ao passeio do que à reflexão sobre este assunto.

Eu sou contra o aborto. Passo a expor as minhas razões. Ter filhos não está nos meus planos imediatos de vida. Na verdade, não sei se alguma vez os quererei ter. Não me sinto menos mulher ou pior pessoa por esse motivo. Gosto de crianças, gosto de aprender com elas. Há uma honestidade nas crianças que tem tanto de maravilhoso como de cruel e isso cativa-me porque considero que é precisamente essa honestidade que vamos perdendo ao longo dos anos.

Para não engravidar, tomo as precauções adequadas sem perder a noção de que existe um grau de falibilidade. Pode ser pequeno, mas existe. Se um destes dias descobrir que, apesar das precauções, estou grávida, o aborto não será uma opção. O meu corpo é meu, sou livre de fazer com ele tudo o que queira, mas isso muda quando há outra vida dentro de mim. Essa vida pode estar dependente da minha, mas considero-a, desde o primeiro dia de gestação, independente, dona dos mesmos direitos que eu. Posso não estar preparada para ser mãe, mas quantas coisas acontecem nas nossas vidas para as quais não estamos preparados?

O facto de ser contra o aborto não significa que seja a favor da penalização de quem se vê obrigada a fazê-lo. Sou inteiramente pela condenação das pessoas que o executam sem qualquer humanidade, em condições perigosas que tantas vezes acabam por ser fatais para as mulheres, mas não creio que se deva recriminar ou condenar uma mulher que, por falta de acesso a um planeamento familiar eficaz, se vê obrigada a interromper uma gravidez. Condeno, isso sim, mulheres esclarecidas, com uma situação económica confortável, que utilizam o aborto como meio anti-concepcional. As outras, as que não têm opções, merecem toda a minha solidariedade e respeito.

Às mulheres que consideram que o direito de abortar é tão importante como o direito de voto, por exemplo, digo isto: não se deixem enganar com falsas liberdades. O direito que vos querem dar é uma prisão. Não aceitem que o Estado varra o lixo para debaixo do tapete. O que falta neste país é uma política de acção social decente, em que as mulheres, todas as mulheres sem excepção, tenham acesso a meios contraceptivos gratuitos, se não os puderem pagar, isto sem ter de passar por longas filas de espera, cheias de burocracias inúteis (passe a redundância). Que se acabe de vez com os preconceitos estúpidos e comece a haver uma disciplina obrigatória de educação sexual nas escolas. Que todas as mulheres tenham o direito a uma gravidez vigiada e a um parto assistido por profissionais competentes. Insulta-me profundamente que a Lei me diga que posso abortar se o meu filho for deficiente. Não é essa a solução que pretendo e não acredito que, excepto em caso de deficiências profundas, incapazes de proporcionar um mínimo de qualidade de vida à criança, alguma mulher decida abortar o seu filho só porque não é “normal”. A obrigação do Estado é proporcionar a essas crianças e aos pais estruturas eficazes de apoio, cuidados médicos e ensino adequados.

Se houver um referendo - e, mais uma vez, espero que sim e que as pessoas, desta vez, participem de forma a torná-lo vinculativo – votarei “Não”. E continuarei a fazê-lo enquanto neste país se servir o aborto às mulheres numa bandeja dourada, como solução “fácil” para problemas que têm como raízes a hipocrisia, o preconceito e o desprezo.