Emília e uma noites
Esta crónica era para ser outra coisa mas sucede que de repente, ao principiar a escrever, Angola me veio com toda a força ao corpo. Desculpem, ia dar-vos uma história que se chamava Emília e uma noites e Angola, sem eu saber porquê, veio-me com toda a força ao corpo. Não sei explicar bem: já não me acontecia há muitos anos, julgava-me livre, julgava-me numa certa paz e estou a mexer a mão sobre o papel com tanta pressa e tanta raiva eu que faço tudo devagar, principalmente desenhar as palavras, eu que não vou corrigir nem uma sílaba, nem uma vírgula, nem reler isto sequer
(eu que releio tanto meu Deus!)
porque é insuportável sentir que Angola me veio com toda a força ao corpo. Não vou ter humor nem ser inteligente nem subtil nem terno nem irónico: Angola veio-me com toda a força ao corpo, custa muito, e o Macaco, o condutor, acaba de morrer de uma mina no Ninda: o Ernesto Melo Antunes estava lá e lembra-se. Perguntem-lhe a ele que se lembra. Pus a mão no peito do Macaco e não havia peito, e no entanto nem uma gotinha de sangue. No Ninda sob os eucaliptos um soldado que foi buscar água ao rio deitado na areia à minha frente. Apenas isto. Este foi o primeiro apenas. Podia relatar-vos muitos outros. Podia relatar-vos coisas horríveis, absurdas, cruéis ao ponto de ter vontade de
não escrevo a palavra só que Angola me veio com toda a força ao corpo e eu acuso a guerra de ter mudado a minha vida. É difícil entender mas eu não estava preparado, era novo de mais, se calhar é-se sempre novo demais. Percebam: eu não merecia aquilo. Falo por mim: não sabia como aquilo era e ao saber como aquilo era compreendi que não merecia aquilo. Como nao mereço isto hoje dia 1 de Setembro, dia dos meus anos em que Angola me vio com toda a força ao corpo. Aos que se interessam pelo que escrevo peço desculpa: ia dar-vos uma crónica chamada Emília e uma noites: pensei nela, tinha-a mais ou menos na cabeça
(tanto quanto se pode ter um texto na cabeça visto que depois o texto toma conta da cabeça e faz-se conforme ele, texto, entende)
achava que vocês iam gostar e todavia não consigo: há tanta coisa em mim, tanta metralhadora, tanto morteiro, tanta horrível miséria. Para a próxima garanto que faço os possíveis por vos dar uma crónica como vocês gostam. Hoje não posso: é o dia dos meus anos e Angola veio-me com toda a força ao corpo. Depois de uma paz comprida, depois de imenso tempo de sossego. Claro que passa, claro que amanhã ou depois já estou melhor, os eucaliptos do Ninda desaparecem, tenho de novo a minha idade de agora, deixo de estar no armazém da companhia
(o armazém da companhia era um barraco)
a olhar os caixões e a pensar qual deles iria ser o meu. Lê-se que toda a guerra estava controlada em Angola: a guerra estar controlada era eu contar os mortos. Se calhar não foram muitos: para mim foram de mais. Se calhar a guerra estar controlada tem que ver com um número reduzido de cadáveres: a merda é que eu os vi. Os conhecia. Costumava falar com eles, essas perdas insignificantes. Eu próprio sou uma perda insignificante a falar de perdas insignificantes. um colega médico explicava assim a desordem e a ineficácia dos bancos de urgência dos hospitais
- O doente entrou bem, depois sobreveio-lhe o banco e morreu
Eu também entrei bem: depois sobreveio-me a guerra e. Há tempos, almoçando com o capitão disse-lhe
- Nunca vi ninguém tão corajoso debaixo de fogo como você a passear de lanterna acesa no meio dos abrigos
e ele olhou para mim uma data de tempo
- Sabe? É que às vezes apetecia-me morrer.
Entendem um bocadinho melhor agora? Foi há 24 anos, caramba. Em 1971. É aborrecido fazer anos e receber Angola de presente. Eu sei que vocêsnão têm nada com o assunto e como nunca viram rapazes mortos sob os eucaliptos do Ninda muito menos têm de pagar as favas disso. Perdoem: a próxima crónica será como se habituaram a que seja, como apreciam que seja. Hoje não sou capaz. Tinha pensado numa coisa bem gira chamada Emília e uma noites e agradeço-vos a pachorra de aturarem por tabela Angola com toda a força no meu corpo. Para mais isto deve estar uma porcaria porque nunca escrevi nada tão depressa. Mas agora pergunto: será que se consegue soltar um grito devagar?
António Lobo Antunes, in Livro de Crónicas
(eu que releio tanto meu Deus!)
porque é insuportável sentir que Angola me veio com toda a força ao corpo. Não vou ter humor nem ser inteligente nem subtil nem terno nem irónico: Angola veio-me com toda a força ao corpo, custa muito, e o Macaco, o condutor, acaba de morrer de uma mina no Ninda: o Ernesto Melo Antunes estava lá e lembra-se. Perguntem-lhe a ele que se lembra. Pus a mão no peito do Macaco e não havia peito, e no entanto nem uma gotinha de sangue. No Ninda sob os eucaliptos um soldado que foi buscar água ao rio deitado na areia à minha frente. Apenas isto. Este foi o primeiro apenas. Podia relatar-vos muitos outros. Podia relatar-vos coisas horríveis, absurdas, cruéis ao ponto de ter vontade de
não escrevo a palavra só que Angola me veio com toda a força ao corpo e eu acuso a guerra de ter mudado a minha vida. É difícil entender mas eu não estava preparado, era novo de mais, se calhar é-se sempre novo demais. Percebam: eu não merecia aquilo. Falo por mim: não sabia como aquilo era e ao saber como aquilo era compreendi que não merecia aquilo. Como nao mereço isto hoje dia 1 de Setembro, dia dos meus anos em que Angola me vio com toda a força ao corpo. Aos que se interessam pelo que escrevo peço desculpa: ia dar-vos uma crónica chamada Emília e uma noites: pensei nela, tinha-a mais ou menos na cabeça
(tanto quanto se pode ter um texto na cabeça visto que depois o texto toma conta da cabeça e faz-se conforme ele, texto, entende)
achava que vocês iam gostar e todavia não consigo: há tanta coisa em mim, tanta metralhadora, tanto morteiro, tanta horrível miséria. Para a próxima garanto que faço os possíveis por vos dar uma crónica como vocês gostam. Hoje não posso: é o dia dos meus anos e Angola veio-me com toda a força ao corpo. Depois de uma paz comprida, depois de imenso tempo de sossego. Claro que passa, claro que amanhã ou depois já estou melhor, os eucaliptos do Ninda desaparecem, tenho de novo a minha idade de agora, deixo de estar no armazém da companhia
(o armazém da companhia era um barraco)
a olhar os caixões e a pensar qual deles iria ser o meu. Lê-se que toda a guerra estava controlada em Angola: a guerra estar controlada era eu contar os mortos. Se calhar não foram muitos: para mim foram de mais. Se calhar a guerra estar controlada tem que ver com um número reduzido de cadáveres: a merda é que eu os vi. Os conhecia. Costumava falar com eles, essas perdas insignificantes. Eu próprio sou uma perda insignificante a falar de perdas insignificantes. um colega médico explicava assim a desordem e a ineficácia dos bancos de urgência dos hospitais
- O doente entrou bem, depois sobreveio-lhe o banco e morreu
Eu também entrei bem: depois sobreveio-me a guerra e. Há tempos, almoçando com o capitão disse-lhe
- Nunca vi ninguém tão corajoso debaixo de fogo como você a passear de lanterna acesa no meio dos abrigos
e ele olhou para mim uma data de tempo
- Sabe? É que às vezes apetecia-me morrer.
Entendem um bocadinho melhor agora? Foi há 24 anos, caramba. Em 1971. É aborrecido fazer anos e receber Angola de presente. Eu sei que vocêsnão têm nada com o assunto e como nunca viram rapazes mortos sob os eucaliptos do Ninda muito menos têm de pagar as favas disso. Perdoem: a próxima crónica será como se habituaram a que seja, como apreciam que seja. Hoje não sou capaz. Tinha pensado numa coisa bem gira chamada Emília e uma noites e agradeço-vos a pachorra de aturarem por tabela Angola com toda a força no meu corpo. Para mais isto deve estar uma porcaria porque nunca escrevi nada tão depressa. Mas agora pergunto: será que se consegue soltar um grito devagar?
António Lobo Antunes, in Livro de Crónicas
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