01 outubro 2003

Manuel e Sofia

Hoje apetece-me falar dos meus avós. É de aproveitar, porque raramente me apetece. Penso neles todos os dias, mas quase nunca falo sobre eles. Morreram cedo demais – se tivessem morrido com 1000 anos teria sido sempre cedo demais para mim – tive pouco tempo para os saborear, para lhes dizer todas aquelas coisas bonitas que é suposto dizermos às pessoas que amamos mas que, por uma ou outra razão, e às vezes até sem razão nenhuma, acabamos quase sempre por calar. E, mesmo quando não as calamos, ficamos com a impressão de que não as dissémos vezes suficientes, com a convicção que lhes era devida.

Somos criaturas engraçadas: poucas pessoas têm vergonha de dizer asneiras alto e bom som, no meio da rua, à frente de estranhos, mas é quase sempre preciso uma coragem épica para dizer que amamos alguém, que sentimos a sua falta, que a nossa vida é mais rica, mais cheia, mais vida, enfim, porque essa pessoa existe, respira, sorri, pronuncia o nosso nome.

Durante alguns anos vivi angustiada pela lembrança dos meus avós. Estava convencida de que nem sempre os tinha tratado com o respeito e o amor que lhes era devido. A dada altura, convenci-me até de que, se tivesse tido mais fé, poderia tê-los salvo, sobretudo à minha avó que o cancro me foi levando sorrateiramente ao longo de meses. Durante esses meses rezei como nunca mais fiz na vida, não disse padres-nossos ou avé-Marias porque nunca os soube (sou a tal que teve 2 horas de catequese em toda a vida), mas apelei com toda a minha convicção a Deus, Maomé e Buda, a todas as forças espirituais e cósmicas, a todas as coisas invisíveis e misteriosas; e às pedras, aos cristais, ao céu, à água, a todas as forças da natureza. Apelei ao tempo para parar e retroceder, mas nenhum me escutou.

Talvez porque nenhum me pudesse na verdade ouvir, ou talvez porque, simplesmente, a vida nem sempre cede à nossa vontade. Esta foi a minha lição de vida, a única que aprendi e considero verdadeira e útil: o tempo não pára, não cede, não retrocede, não se compadece de nós. Cada dia é único e cada momento irrepetível. Não podemos ressuscitar os mortos e não podemos comunicar com a substância etérea porque essa, provavelmente, também não existe. Podemos sim celebrar cada dia de vida dizendo e fazendo o amor que sentimos.

As pessoas não se substituem, mas quando, pouco tempo depois da morte da minha avó, a minha irmã me disse que estava grávida, senti-me pela primeira vez grata por estar viva. Hoje, 15 anos depois, tenho a certeza de que a vida não se repete, mas renova-se, renasce. A dor de perder as pessoas que amamos pode ser aliviada se recebermos de braços abertos outras pessoas para amar. Esta é uma benção ao alcance de todos, mesmo daqueles que não têm fé.

Carpe diem!