20 novembro 2003

Lisboa

Hoje, mais uma vez, realizei a minha rotina bimensal de ir á consulta de hipo-coagulação, com a sua inevitável análise. Entre o tempo que medeia entre uma e outra, aproveito para passear pela cidade de Lisboa a pé. É cansativo, é certo, principalmente porque tenho de estar sempre a desviar-me de carros (parados e em movimento) em cima do passeio e na estrada, para onde tenho de me desviar por vezes, mas é estimulante e compensador.
Passo três, quatro horas, avenida acima, avenida abaixo, travessa para a esquerda, beco para a direita. Entro num ou noutro café, bebo uma bica ou uma água, observo o que me rodeia.
Casas a cair, edifícios de escritórios espelhados, gente apressada de um lado para o outro. Um senhor que estava no Passeio Público, sentado num banco de jardim, acompanhado pelo seu cão, sentado também, em cima do banco, olhando impávido e sereno, o movimento das outras pessoas (dava uma bela fotografia, mas infelizmente deixei a máquina em casa). Vejo portugueses, indianos, chineses, imigrantes de leste, africanos, brasileiros, e outros povos que se cruzam dia a dia, num país que é de todos, e a todos pertence. Observo o comércio. Nas laterais da avenida, pequenos pólos parecem um mundo à parte. Habitações pertencentes a uma população mais idosa, que se conhece, que se trata por tu. As mercearias de esquina, os cafés, as associações culturais e os clubes de bairro, os reformados sentados, fumando o seu cigarro, conversando sobre o estado da nação, ou sobre a vitória do clube x ou y. Peças de roupa estendida nas varandas, ou no estendal.
O turbilhão de movimento matinal inicia-se após uma noite mais sossegada. A cidade não pára, entorpece por algumas horas, mas nunca, nunca chega a adormecer. Logo mais, tudo se repete.


Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores ...
À força de diferente, isto é monótono.
Como à força de sentir, fico só a pensar.

Se, de noite, deitado mas desperto,
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.

Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
A força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.

Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.


Álvaro de Campos, Lisboa