03 fevereiro 2004

Um amigo aconselhou-me a escrever esta história. Há muito tempo que não me lembrava dela, mas veio-me à memória na 6ª feira passada, enquanto falava com esse amigo. Então, para ele e para o Tiago que está prestes a começar uma vida nova, aqui vai.

Há uns anos, viajava de autocarro na carreira nº 49 da Carris, que faz a ligação entre Alvalade e Restelo. Devia vir do Museu das Janelas Verdes, quase de certeza absoluta. Algures em Alcântara, um rapaz que viajava de pé caiu para o chão e começou a contorcer-se e a deitar espuma pela boca. As pessoas em redor afastaram-se institintivamente. Estávamos a passar perto da esquadra da PSP de Alcântara e o condutor parou o autocarro e, com a maior frieza imaginável, como se já tivesse visto aquela mesma cena vezes suficientes para saber como agir, dirigiu-se ao rapaz e, aos pontapés, atirou-o do autocarro. Depois saiu também e arrastou-o até perto da esquadra. Sem uma palavra voltou para o autocarro. Sem uma palavra, retomou o percurso. Nós, os passageiros, ficámos estupefactos, a olhar uns para os outros, incrédulos do que acabávamos de presenciar.

Não sabia se estava a sonhar, mas lembro-me de me levantar e protestar qualquer coisa em voz alta. O condutor limitou-se a encolher os ombros. A pessoa que estava comigo puxou-me e fez-me sinal para me voltar a sentar. Não sei se mais alguém disse alguma coisa, para ser sincera.

Hoje, muitos anos depois, sei que deveria ter descido também do autocarro. Sei que deveria ter acompanhado o rapaz. Sei que deveria ter protestado. Sei que deveria ter anotado a matrícula do autocarro e apresentado queixa formal do motorista. Sei que deveria ter feito mais qualquer coisa do que dizer meia dúzia de palavras ôcas já depois de o autocarro ter arrancado. Sei que deveria ter sido menos cobarde, menos acomodada. Se calhar, fui preconceituosa...Fui de certeza pouco corajosa.

Muitos de nós continuam a pensar na droga – e, atenção, ninguém soube ao certo se o rapaz era drogado. Creio que todos partimos desse princípio, devido à idade e ao aspecto. O velho preconceito sempre à nossa volta! – como um vício, em vez de uma doença. Outros dizem que se trata de uma doença auto-infligida e, como tal, os drogados são uma espécie de doentes “de segunda”, que não merecem o mesmo tratamento, a mesma atenção.

E eu pergunto: quantas doenças, além da toxicodependência, podem ser auto-infligidas? Ou melhor, quantas formas de toxicodependência se conhecem? Sabemos que o tabaco mata e, no entanto, continuamos a fumar. Sabemos que o álcool mata, e no entanto continuamos a beber. Consumimos gorduras, vivemos em permanente estado de ansiedade, tomamos comprimidos para tudo e mais alguma coisa, não vamos ao médico regularmente, descuramos o nosso corpo todos os dias. A diferença é que existem “vícios” consentidos, bem tolerados socialmente e até incentivados e outros que são pontapeados para fora das nossas vistas como coisas vergonhosas.

Até quando?