15 outubro 2003

Ruben


Quando andava no 10º ano tinha um grupo simpático de amigas que entretanto se dispersou vida fora. Andávamos todas na mesma turma, tínhamos a mesma idade e morávamos perto umas das outras. Éramos cinco – as “Famosas Cinco”, como gostávamos de dizer. Encontrávamo-nos frequentemente depois das aulas em casa da Susana (a mãe dela preparava uns lanches estupendos!). Mas aí nunca éramos cinco – éramos seis. O irmão mais novo dela, o Ruben, gostava de ficar connosco na sala a ouvir – e a participar – nas conversas e nas brincadeiras. O Ruben tinha seis anos e era do mais esperto que se possa imaginar! Sabia tudo, percebia tudo, como irmão mais novo, cumpria muito bem a sua função de “atazanar” a vida da irmã, revelar-lhe os segredos e fazer pouco dela. Connosco era diferente, sobretudo comigo. Sempre me relacionei bem com crianças e animais, melhor do que com adultos. Sempre preferi assim. A companhia das crianças e dos animais faz-me acreditar que as coisas são simples e os afectos autênticos. Há uma verdade, uma pureza, uma paz única na companhia das crianças. Com o Ruben era assim: ele era a minha companhia preferida, o meu melhor companheiro de brincadeiras. Quando fiquei doente, ele não me pôde visitar no hospital mas mandou-me um presente: um porta-chaves do Garfield – um gosto partilhado e que eu cultivo até hoje –com a seguinte inscrição “Come on, amigo!”. O porta-chaves estragou-se, mas guardo religiosamente esse Garfield como uma das coisas mais importantes que alguma vez recebi.

Pouco tempo depois da minha recuperação, o Ruben ficou doente. Foi numa Terça-feira. Começou com febres altas e teve de ser internado de urgência. Passou quarenta e oito horas nos cuidados intensivos, a fazer todo o tipo de exames possível. Quando finalmente consegui falar com a Susana, ela disse-me que o Ruben já não estava nos cuidados intensivos. Precipitada como sempre, disse-lhe imediatamente que queria vê-lo e perguntei se poderia ir à visita no dia seguinte. Ela respondeu que já não valia a pena...

Demorei alguns minutos a perceber o que queria ela dizer e quando percebi fiquei em choque: o Ruben tinha morrido. Leucemia galopante. Chegou sem avisar e instalou-se no corpo dele silenciosamente, enquanto brincávamos, enquanto ríamos, enquanto lanchávamos. Eu não dei por nada, ninguém percebeu nada. A doença foi sorrateira, discreta, não apresentou pistas físicas até ser tarde demais. Nada podia tê-lo salvo. Não tivémos qualquer hipótese, o Ruben não teve qualquer hipótese.

Foi o primeiro e único funeral de criança a que assisti até hoje. Colocámos-lhe dentro do caixão um avião telecomandado que lhe tínhamos comprado para lhe oferecer nos anos. Não existem palavras que descrevam a imensa tristeza dos pais. O cabelo da mãe ficou completamente branco em poucos dias.

Não me esqueço do comentário da minha mãe: “Para que é que Deus lho deu, se lho tirou tão pouco tempo depois?”. O Ruben tinha sido o segundo filho muito esperado e desejado de um casal a quem foi dito que não poderia ter mais filhos, daí a diferença de idade que tinha da irmã.

Nunca me esqueci dele, acho que nunca me esquecerei. Sempre que ouço a palavra leucemia é a imagem dele que vejo. Tenho pensado, nos últimos dias, qual a melhor abordagem para este assunto, que mensagem, que ideia poderia eu transmitir de maneira eficaz. Depois do muito que se tem falado sobre leucemia, o que poderia eu acrescentar que pudesse fazer alguma diferença? Decidi falar-vos do Ruben, recordá-lo, homenageá-lo, até porque faz manhã catorze anos que morreu – ironicamente.

A mensagem que gostaria de fazer passar é esta: no caso do Ruben e noutros casos semelhantes, nada se pode fazer, a doença não dá avisos nem tréguas, é implacável, não nos deixa sequer tentar combatê-la. Mas, felizmente, nem sempre é assim e há casos nos quais podemos fazer a diferença. Todos temos afectos, família, amigos, pessoas a quem amamos mais do que a nossa própria vida. Por elas, mas também por todas as que ainda não conhecemos e provavelmente nunca chegaremos a conhecer, pelas pessoas saudáveis tanto quanto pelas que o não são, pelos jovens e pelos velhos, por todos, sem olhar a raças, credos, convicções e outros disparates sociais.

Por todos e por nós mesmos, um pequeno gesto que pode fazer toda a diferença e, quem sabe, pode até salvar a vida de alguém que nos é querido. Uma análise ao sangue e depois, no caso de termos a sorte de ser chamados a doar medula, uma picada na tíbia que pode até doer um bocadinho, mas é um preço ridiculamente baixo a pagar pela vida de alguém. Inscrevam-se como dadores de medula - já há tanta coisa nesta vida que nos ultrapassa, não vamos deixar que a leucemia seja mais uma.