05 fevereiro 2004

O civismo à moda da casa

Pode dizer-se em suma que Portugal é um dos mais belos, um dos melhores, um dos mais agradáveis países do mundo, mas habitado por uma gente que o não merece

Ah! Tanto que haveria para dizer sobre a falta de civismo dos portugueses, mas desconfio que todo o tempo do mundo (que eu não tenho) não seria suficiente. São tantas as variantes, desde o inocente papel atirado para o chão, até ao estado caótico dos poucos sanitários públicos que ainda subsistem na cidade de Lisboa; desde a beata atirada para a berma da estrada para não sujar o cinzeiro do carro, até à lata de Sagres semi-enterrada, à laia de armadilha, no areal da Caparica, quase sempre acompanhada da casca de melão e da embalagem de iogurte que dizem adeus às caixas de margarina e aos frascos de bronzeador que flutuam nas ondas para onde foram atirados por pessoas iguaizinhas a nós, com as quais todos os dias nos cruzamos na rua, no elevador, nos transportes, no banco, no supermercado, no café.

Pessoas que, sendo aparentemente iguais a nós, sofrem de uma grave enfermidade que se traduz por uma estreitíssima noção de propriedade, que as leva a considerar como seus a casa onde vivem, o carro e alguns haveres pessoais, que quase sempre estimam, muitas vezes muito para além do que seria razoável (veja-se, a título de exemplo, o esmero exacerbado com que alguns homens tratam os seus automóveis, chegando ao extremo de lhes dedicar um dia inteiro na semana – quase sempre, o Domingo, mas desde que não haja futebol – durante o qual aspiram, limpam, sacodem e puxam o brilho com gestos lânguidos, como se estivessem a fazer festinhas ao possante bólide). Estas mesmas pessoas, costumam demonstrar um absoluto desprezo pela propriedade alheia e até por aqueles locais que o senso comum (e os impostos que alguns de nós teimam em pagar) diz serem de utilização colectiva, para usufruto e benefício de todos.

Estas pessoas são doentes. A falta de civismo é uma doença e precisa ser tratada. Como? Sugiro que se contrate a EMEL para, ao invés de verificar a mesma fila de carros indevidamente estacionados 697 vezes seguidas, começar também a observar o comportamento destes transeuntes e a aplicar-lhes multas pelo indecente comportamento cívico que muitas vezes fazem questão em exibir, quase como se tivessem orgulho em ser assim.

Quando, em 1730, o viajante César de Saussure escreveu a frase que citei, certamente não esperava que, passados 274 anos, as suas impressões de Portugal e, sobretudo, dos Portugueses continuassem tão válidas e actuais.