04 fevereiro 2004

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Quando eu nasci, a minha mãe já não trabalhava mas, quando eu tinha cerca de três anos, resolveu recomeçar a trabalhar a meio-tempo. Foi quando conhecemos a Maria do Rosário, Magá, na minha linguagem atabalhoada de criança. E Magá ficou para mim, para a minha mãe e para a minha irmã. O que dizer da Magá? Gostava de estar com ela, gostava tanto que fugia para ir ter com ela. Um dia, enquanto ela se despedia dos meus pais à porta de casa, eu resolvi escapulir-me escadas abaixo para ir para casa da Magá. Mas as escadas eram bastante estreitas e as botas ortopédicas não ajudaram e lá fui eu, escadas abaixo. O estrondo fez com que o meu brilhante plano tivesse uma curta existência e acabei por ir com a Magá sim, mas até ao hospital, para que me cosessem o queixo...

A Magá era generosa, boa, simples. Se é possível comparar as pessoas a paisagens, então a Magá seria um dia de sol, um céu perfeito, uniforme e brilhante no seu azul, sobre um mar cristalino, morno, verde-esmeralda, onde nunca se perde o pé.

Nos últimos anos, a Magá tinha ido viver para o seu querido Alentejo – era uma exilada na cidade que aquecia o ânimo com histórias e cantigas de outros tempos, de outro mundo que eu fui conhecendo através dela. Sempre gostei de ouvir cantar. Sempre gostei de ouvir histórias. E as que a Magá me contavam tinham um saber ancestral e misterioso que só redescobri muitos anos mais tarde quando trabalhei na recolha de algumas lendas tradicionais portuguesas. Falavam de mouras encantadas e de grutas misteriosas, de poços sem fundo e de tesouros escondidos, de serras povoadas de fantasmas e de pedras que choram. Muitas vezes adormeci ao som das suas canções. Muitas vezes as suas histórias me transportaram a mundos fantásticos, que eu nem sonhava que existiam, num recanto qualquer das nossas imaginações, da dela que nunca me contava a mesma história exactamente da mesma maneira, e da minha que reproduzia imagens que só eu podia ver.

Não quis que nos avisassem de que estava doente. Quando os tratamentos a obrigaram a voltar para Lisboa, nunca nos disse que aqui estava, sempre nos deixou acreditar que continuava lá, nas terras do sol e do pão. Quando o cabelo lhe caiu, deixou de sair de casa. Não suportava os olhares de pena que as pessoas lhe dirigiam. Proibiu o marido de nos dizer que tinha morrido até que o funeral estivesse terminado. Ele cumpriu. Compreendo a sua decisão, mas não me conformo. Queria tê-la visto mais vezes. É sempre assim – nunca temos tempo suficiente com as pessoas de quem gostamos. Ficamos sempre frágeis e infantis quando alguém nos morre. É uma parte do nosso passado que desaparece, é menos uma pessoa neste mundo a amar-nos. Ficam as memórias, fica tudo o que aprendemos, mas fica também uma grande tristeza, que o tempo vai atenuando e que se vai tornando mais suave, tal como as rochas que a água foi aos poucos esculpindo.

Onde quer que a Magá esteja, espero que esteja em paz. Se algumas coisas perduram para lá da vida, então que a dor não seja uma delas.