Efeméride do Dia
1846 - Início da revolta conhecida por Maria da Fonte.
A Revolta de Maria da Fonte
As leis cabralistas, principalmente as da saúde e as da décima de repartição, deixaram a população do reino em permanente efervescência. Em cada dia que passa, a população não cessa de reclamar. Mas é inútil. As suas reivindicações continuavam por satisfazer. Faziam-se então apelos à revolta. « Povo! Meneia três vezes a cabeça, reflecte. Não tens um pulso para a espada, um ombro onde encostes a espingarda, olhos para a pontaria, dedos para o gatilho?» O povo, por enquanto, barafusta. Agita-se. Move-se contra a lei da saúde. E a partir de Janeiro de 1846, no concelho da Póvoa de Lanhoso, começaram as desordens. (...) Os sinos das igrejas de Taíde, Oliveira e de outras freguesias das cercanias não pararam de tocar, «ora a defunto, ora a rebate, e eram mulheres que os tocavam.» «Parecia», diz um contemporâneo, «uma entremezada.» De todos os lados, chamadas pelos sinos, chegavam mulheres alvoraçadas e em coro com as outras foram retirando «soltando impropérios contra os empregados da saúde, contra os emolumentos sanitários, dizendo que a igreja era sua, que os mortos não precisavam de pagar a médicos e cirurgiões para se enterrarem» .
No dia seguinte foram presas quatro mulheres ( três de Fonte Arcada e uma da freguesia de Taíde), «havidas por cabeças de motim» A de Taíde «foi logo tirada no caminho aos cabos por mulheres armadas e (...) as outras recolhidas na cadeia da Póvoa» (...)
Na vila, no Largo da Fonte, tinham as revoltosas o seu quartel-general: a Estalagem de Luísa Balaio - conhecida, desde há muito, por Maria da Fonte. Na sociedade oitocentista portuguesa, aqueles espaços constituíam a atracção de múltiplos encontros. Eram lugares de paragens, acolhimentos, bebericares, lambiscos, paródias, negócios e confidências. Cruzavam-se párocos, marchantes, almocreves, postilhões, boleeiros, ferradores, tamanqueiros, militares, fidalgos, palafreneiros, usurários e marginais. Também lá, no costume do palratório, redobravam certamente as alusões à política e organizava-se opinião. A Estalajadeira não ocultava a dela: reclamava, como as outras, o direito à religião antiga. E era encarada como uma apoiante fervorosa. Não foi à guerra, mas abasteceu e alojou as tropas: « Quando as revoltosas se dirigiam em numerosos concursos à vila tomavam para ponto de reunião a hospedaria da Maria da Fonte, e esta gostosamente lha franqueava, preparando-lhes, sem retribuição alguma, abundantes refeições.» Observar-se-á que uma pequena hospedaria, no seu ramerrão corriqueiro, não disponha de tigelas de caldo, sardinhas salgadas, pão e vinho para regalar aquele magote. Tinha de estar forçosamente prevenida, e não se pode afiançar quem suportou as despesas: vagueiam entre a verdade e as ilusões, entre o dito e o não-dito.
Maria Luisa Balaio tinha relações estreitas e ocultas com a entrosagem da sarrafusca, estava inserida numa rede de cumplicidades, aquentava o vaivém do turbilhão. Foi da sua locanda que saíram as revoltosas com o ânimo de libertarem as companheiras. No meio de cantorias, «assaltaram a cadeia, cujas portas despedaçaram a machado, e tiram as presas, não anuindo porém às instâncias dos outros presos que queriam evadir-se.» Quem sobressai nesta arremetida? Maria Angelina, que dá o sonho, a cor e a energia à insurreição. Vestida de colete de lã e saiote encarnado, com duas pistolas metidas na larga faixa e carabina ao ombro, iluminou os talvegues, quebradas e cordilheiras. A sua presença desafiou o século, e foi mais do que o símbolo da sublevação feminina. Em pleno romantismo, foi título de jornal, inspirou escritores, jornalistas, poetas, dramaturgos, musicógrafos, pintores, caricaturistas e foi, por diversas vezes, litografada. Ana Maria Esteves também saiu da obscuridade por estar à cabeça das atroadas e ter arrombado, com golpes de machado, as portas e o alçapão da cadeia. Mas o verdadeiro herói está na rua: é o colectivo feminino. As mulheres, em bandoria, deslizam em festas e brados. Nos ares ressoam os vivas à rainha, os vivas às mulheres, os morras aos Cabrais e as palavras de ordem do movimento: Leis novas abaixo, velhas acima!
Texto extraído da obra de Luís Dantas, «A Revolta da Maria da Fonte», Edições Ceres, Ponte de Lima, 2001
A Revolta de Maria da Fonte
As leis cabralistas, principalmente as da saúde e as da décima de repartição, deixaram a população do reino em permanente efervescência. Em cada dia que passa, a população não cessa de reclamar. Mas é inútil. As suas reivindicações continuavam por satisfazer. Faziam-se então apelos à revolta. « Povo! Meneia três vezes a cabeça, reflecte. Não tens um pulso para a espada, um ombro onde encostes a espingarda, olhos para a pontaria, dedos para o gatilho?» O povo, por enquanto, barafusta. Agita-se. Move-se contra a lei da saúde. E a partir de Janeiro de 1846, no concelho da Póvoa de Lanhoso, começaram as desordens. (...) Os sinos das igrejas de Taíde, Oliveira e de outras freguesias das cercanias não pararam de tocar, «ora a defunto, ora a rebate, e eram mulheres que os tocavam.» «Parecia», diz um contemporâneo, «uma entremezada.» De todos os lados, chamadas pelos sinos, chegavam mulheres alvoraçadas e em coro com as outras foram retirando «soltando impropérios contra os empregados da saúde, contra os emolumentos sanitários, dizendo que a igreja era sua, que os mortos não precisavam de pagar a médicos e cirurgiões para se enterrarem» .
No dia seguinte foram presas quatro mulheres ( três de Fonte Arcada e uma da freguesia de Taíde), «havidas por cabeças de motim» A de Taíde «foi logo tirada no caminho aos cabos por mulheres armadas e (...) as outras recolhidas na cadeia da Póvoa» (...)
Na vila, no Largo da Fonte, tinham as revoltosas o seu quartel-general: a Estalagem de Luísa Balaio - conhecida, desde há muito, por Maria da Fonte. Na sociedade oitocentista portuguesa, aqueles espaços constituíam a atracção de múltiplos encontros. Eram lugares de paragens, acolhimentos, bebericares, lambiscos, paródias, negócios e confidências. Cruzavam-se párocos, marchantes, almocreves, postilhões, boleeiros, ferradores, tamanqueiros, militares, fidalgos, palafreneiros, usurários e marginais. Também lá, no costume do palratório, redobravam certamente as alusões à política e organizava-se opinião. A Estalajadeira não ocultava a dela: reclamava, como as outras, o direito à religião antiga. E era encarada como uma apoiante fervorosa. Não foi à guerra, mas abasteceu e alojou as tropas: « Quando as revoltosas se dirigiam em numerosos concursos à vila tomavam para ponto de reunião a hospedaria da Maria da Fonte, e esta gostosamente lha franqueava, preparando-lhes, sem retribuição alguma, abundantes refeições.» Observar-se-á que uma pequena hospedaria, no seu ramerrão corriqueiro, não disponha de tigelas de caldo, sardinhas salgadas, pão e vinho para regalar aquele magote. Tinha de estar forçosamente prevenida, e não se pode afiançar quem suportou as despesas: vagueiam entre a verdade e as ilusões, entre o dito e o não-dito.
Maria Luisa Balaio tinha relações estreitas e ocultas com a entrosagem da sarrafusca, estava inserida numa rede de cumplicidades, aquentava o vaivém do turbilhão. Foi da sua locanda que saíram as revoltosas com o ânimo de libertarem as companheiras. No meio de cantorias, «assaltaram a cadeia, cujas portas despedaçaram a machado, e tiram as presas, não anuindo porém às instâncias dos outros presos que queriam evadir-se.» Quem sobressai nesta arremetida? Maria Angelina, que dá o sonho, a cor e a energia à insurreição. Vestida de colete de lã e saiote encarnado, com duas pistolas metidas na larga faixa e carabina ao ombro, iluminou os talvegues, quebradas e cordilheiras. A sua presença desafiou o século, e foi mais do que o símbolo da sublevação feminina. Em pleno romantismo, foi título de jornal, inspirou escritores, jornalistas, poetas, dramaturgos, musicógrafos, pintores, caricaturistas e foi, por diversas vezes, litografada. Ana Maria Esteves também saiu da obscuridade por estar à cabeça das atroadas e ter arrombado, com golpes de machado, as portas e o alçapão da cadeia. Mas o verdadeiro herói está na rua: é o colectivo feminino. As mulheres, em bandoria, deslizam em festas e brados. Nos ares ressoam os vivas à rainha, os vivas às mulheres, os morras aos Cabrais e as palavras de ordem do movimento: Leis novas abaixo, velhas acima!
Texto extraído da obra de Luís Dantas, «A Revolta da Maria da Fonte», Edições Ceres, Ponte de Lima, 2001
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