21 novembro 2003

Mais um Natal

Morrer é um dia igual a outro qualquer, só que mais curto.
(António Lobo Antunes)

Vem aí mais um Natal. Chega a passos de gigante e eu já lhe sinto o sabor agridoce. Desde há 17 anos que é assim. Desde que a minha avó morreu que o Natal deixou de ser. Passou a existir apenas no calendário e nas lembranças raramente invocadas de tempos mais felizes, em que as coisas eram mais simples e o Pai Natal me batia à porta, madrugada dentro. Claro que eu sabia que não era o Pai Natal quem me visitava. Não é que eu fosse um prodígio, mas tinha descoberto, por acaso, os meus presentes escondidos debaixo da cama dos meus pais, meses antes do Natal...

Agora é tudo diferente. A minha mãe anda triste, chora às escondidas e sente-se desamparada, como se fosse ela própria uma criança. Vira-se para mim e para a minha irmã, frágil e dependente de nós. Abraço-me a ela e ela aninha-se no meu colo e faz-se mais pequena. Nessas altura penso que os papéis se inverteram e agora sou eu quem a ampara na tristeza e o colo que me deu abrigo, agora se abriga em mim. A diferença é que as minhas tristezas de criança eram raras e todas fáceis de resolver. A dela é permanente e não tem consolo ou solução possíveis e é nesta época que mais se faz sentir.

Quando morre alguém de quem gostamos, o choque deixa-nos dormentes. Velório, missas, funeral, pêsames, todo o cortejo obrigatório é irreal, como um filme que apenas somos capazes de pressentir. A verdadeira dor vem depois, mais tarde, quando a vida retoma o seu leito e nos arrasta para as mesmas rotinas, os mesmos rituais de sempre. É durante esses momentos que percebemos a falta, o buraco, o vazio que não podemos preencher. As lembranças físicas podem ser apagadas, pode-se tirar uma cadeira da mesa, uma almofada da cama, mas não se pode tirar um afecto nem substituí-lo ou escondê-lo – tirar de onde? Substituir por quê? Esconder de quem?

Um ano depois da morte da minha avó nasceu o meu sobrinho. É preciso que uns morram para que outros nasçam, digo-lhe eu. Mas a minha voz soa a vazio e logo me arrependo e penso “Que disparate!”. Tento trazê-la para a vida, para as pessoas que precisam dela e no fundo de mim sinto uma mágoa a crescer: será que a minha mãe gostava mais dos meus avós do que de mim e da minha irmã? Depois penso outra vez “Que disparate!”.

Fico à espera que passe mais um Natal como quem fica à espera que a chuva pare para poder continuar o caminho.