14 junho 2006

Terra

Terra, Terra,
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
(Caetano Veloso, Terra)

Não há nenhum que não cante
a vez em que à terra torna
(Sérgio Godinho, Chuvas de Cabo Verde)


Somos como as árvores. Com o passar do tempo, vamos ganhando raízes que se entrelaçam com outras raízes e que entram no subsolo, que contornam as rochas e se estendem em todas as direcções, que rebentam o asfalto e vêm à superfície à procura de mais espaço, de mais terra.

Há poucos anos atrás, nada me prendia. Hoje, toda eu sou raízes. Por isso percebo cada vez melhor os que deixam a terra para tentar a sorte por outras paragens. Percebo-os porque continuo a viver na cidade onde nasci e da qual gosto cada vez mais, porque sempre que lhe dedico alguma atenção, ela recompensa-me com recantos, paisagens, lugares onde que nunca tinha estado. Percebo-os porque nunca tive de partir, de deixar a minha casa, a família, os amigos para viver noutro país. Percebo-os porque nunca tive de me desenraizar.

Há pouco, encontrei uma colega que esteve de férias em Moçambique, ao fim de sete anos de ausência. Sete anos não é assim muito tempo, se olharmos para o calendário, mas a distância é imensa, há muita terra, muito mar, muita lonjura entre Portugal e Moçambique. Voltou mais saudosa da família que reviu, do neto que por lá nasceu. Disse-me com ar feliz que conseguiu finalmente ir à campa dos pais para a limpar, para a arranjar. Disse-me isto como se fosse a coisa mais importante que poderia ter feito, como se fosse uma promessa há muito por cumprir.

Apesar da saudade, estava feliz, com uma luz diferente na pele, nos olhos. Era a mesma luz que se encontra nas pessoas que vivem longe, quando falam da terra.

Por mim, continuo a gostar de ver Lisboa na rua, a desfilar Avenida fora, chinela no pé, sem peneiras e cheia de alegria, trazendo atrás a procissão das cores e das tradições de cada bairro. É uma espécie de “puzzle” popular, que não se esgota no dia de Santo António e cuja importância ainda não decaiu, porque a marcha é linda e ser marchante ainda é uma ambição, apesar dos marchands-marchantes que insistem em andar de charrete, rodeados de um arsenal de seguranças mais espesso do que a camada de maquilhagem que lhes serve de cara.

Enfim, sinal dos tempos, modas passageiras às quais Lisboa vai sobrevivendo, um bocadinho menos bonita por causa dos enfeites de gosto duvidoso com que alguns insistem em adorná-la, um tanto ou quanto menos viçosa devido à poluição crescente, mas sempre vaidosa, sempre alfacinha, sempre Lisboa, sempre minha.