11 agosto 2003

Até ao fim do mundo

"No equation to explain the division of the senses"
("It takes time", Patti Smith, "Until the end of the world" BSO)

Este sábado revi o filme "Until the end of the world". Não sendo uma cinéfila, gosto do Wim Wenders. Não sei dizer se tecnicamente é um bom realizador. Sei que inventa, dirige histórias inteligentes, cheias de sensibilidade e sei que adora Lisboa, a mesma Lisboa que eu adoro, a cidade velha, decadente, povoada de gente pobre a viver em casas antigas.

Gosto especialmente deste filme porque marcou uma época da minha vida. 1991 foi o ano em que entrei para a faculdade. Para Direito, na FDUL. Tinha boas médias, safei-me bem na PGA, foi fácil entrar. Difícil foi manter-me lá. Não foi preciso muito tempo para perceber que não gostava do curso e que não iria conseguir andar ali 5 anos a queimar pestanas. Logo nos primeiros dias quis desistir. Mas comecei a conhecer a Lurdes, o Carlos, a João e a Susana. A turma, que estava dividia em "Câmara Alta" e "Câmara Baixa". Nós fazíamos parte da segunda, claro. Não foi uma divisão planeada ou forçada, aconteceu simplesmente. Os meninos ricos ficaram do lado direito da sala, nós do lado esquerdo.

A amizade que depressa me prendeu sobretudo à Lurdes e ao Carlos foi suficiente para me convencer a ficar, pelo menos ao longo do primeiro ano. Foi com eles que assisti ao filme. Curiosamente, assisti a muitos outros filmes, mas é este que me faz lembrar deles. Ví­amo-nos todos os dias e, mesmo assim, trocávamos cartas e falávamos horas ao telefone. Nunca se nos esgotavam os temas de conversa. Nunca se nos secava a amizade - pelo contrário, era um rio de caudal cada vez mais intenso, tão intenso que me assustou e eu comecei a fugir. Quando começamos a precisar demasiado das pessoas sentimos medo. Há pessoas viciantes e eles eram-nos sem dúvida. Lembro-me do dia em que lhes comuniquei a minha decisão de desistir do curso. A Lurdes não disse nada. O Carlos disse isto: "Se dependesse de mim, se me dissesses que valia a pena, amarrava-te aos pilares da entrada". Disse-lhe que não com a cabeça. Não dissémos mais nada sobre o assunto.

Nos anos que se seguiram, tentámos manter uma amizade mais distante, mais "normal". Começámos a afastar-nos. Devagar, quase sem o sentirmos, a nossa Pangeia separou-se. Hoje estamos longe. Perdemos todo e qualquer contacto. Eles nunca aceitaram aquilo que entenderam como uma cobardia da minha parte - não sei se hoje já saberão que por vezes é preciso mais coragem para desistir de uma coisa do que para, teimosamente, continuar a insistir em algo que já não faz sentido (no caso do curso de Direito, para mim nunca fez sentido estar ali. Era a vontade do meu pai que eu estava a cumprir, não a minha). Talvez seja melhor assim, penso eu às vezes. Talvez eles já nem se lembrem de mim. Talvez...Se, por uma dessas coincidências que a vida nos concede de vez em quando, um de vós (ou ambos) me estiver a ler, dêem-me um sinal de vida. Pela minha parte, lamento muitas coisas que fiz e disse e outras que nunca fiz e nunca fui capaz de dizer. Mas não lamento ter desistido de Direito. Hoje mais do que nunca estou certa de que, por muito que tivesse insistido, nunca seria capaz de terminar o curso. Hoje mais do que nunca sei que sou movida a paixão e que não consigo fazer nada em que não acredite com todo o meu ser. Lamento ter-vos deixado partir.

Quando saímos do cinema eu fiz um comentário qualquer à Solveig Dommartin e o Carlos respondeu: "Não digas nada! Deixa-a ficar lá." Nunca mais comentámos o filme e eu nunca soube muito bem onde era "Lá". Deve ser um recanto qualquer, resguardado do mundo, que existe apenas na nossa memória, nos nossos sonhos. Íntimo, privado, único, precioso. Se assim é, é Lá que vocês habitam e a nossa amizade, tão forte que me metia medo, continuará a pulsar, até ao fim do mundo