05 novembro 2003

Hoje de noite tive uma das minhas paragens de digestão que me deixaram acordada até de madrugada. Como de costume, o António Lobo Antunes fez-me companhia até o meu estômago melhorar e eu conseguir voltar a adormecer. Ninguém escreve sobre a solidão como ele e eu dei comigo a pensar em ti. Quando nos conhecemos, tu eras a própria solidão feita gente, nunca conheci ninguém tão só como tu.

Hoje quero que saibas que não te esqueço. Esquecer-me de ti seria igual a esquecer-me de mim própria e do momento da minha vida em que senti uma dor que antes não conseguia perceber – a dor de acabar uma relação quando ainda se gosta. Tu ajudaste-me a superar a dor, a arrumá-la em mim, a dar-lhe um sentido, uma razão, um proveito. Apareceste na altura certa, aparecemos um ao outro na altura certa, como não podia deixar de ser – a vida não acontece ao acaso, não é?

Vieram-me à memória os nossos passeios pelo jardim botânico nas tardes de verão, do verão mais só das nossas vidas. As noites que subimos e descemos o Chiado a pé, sempre a falar, sempre a partilhar, sempre a consolar. Éramos tão críticos um com o outro, lembras-te? Discutíamos tanto! Éramos tão diferentes, mas tão próximos. A primeira vez que me despi à tua frente, ficaste envergonhado. Eu desatei a rir e disse-te que já te tinha mostrado coisas muito mais íntimas do que o meu corpo que é tão somente um corpo, igual a todos os outros com os quais chocamos na rua pela vida fora. Dormimos juntos, abraçados tantas vezes. Eras o meu irmão mais novo, a minha melhor descoberta, o meu amigo para sempre, a minha torre de força e entendimento.

Um dia afastámo-nos. Eu dei por isso, sabes, desde o início. Tentei avisar-te, lembras-te? Disse-te que as nossas rotas tinham mudado, tu já não eras a mesma pessoa. Cada um de nós tinha voltado a ser feliz mas a diferença é que eu aceitei a felicidade de volta, não sem medo, mas de braços e alma abertos. Tu...tu nunca aceitaste que merecias ser feliz. As discussões transformaram-se em zangas, cada vez mais tristes, cada vez mais frequentes. Nós que nos falávamos todos os dias, várias vezes ao dia, passámos a evitar-nos. Primeiro evitamos os telefonemas, depois as palavras, por fim os olhares...

Um dia veio a ruptura. Fui eu quem deu o passo. Nunca tinha acabado uma amizade, foi tão estranho. Foi como acabar um namoro. Foi ridículo e penoso. Disse-te que não podia continuar assim, que te tinhas tornado uma pessoa triste e amarga, cheia de ressentimentos e culpas para lançar sobre os outros, nunca sobre ti. Disse-te que tinhas escavado um abismo que eu não conseguia transpor porque não estava do outro lado, já tinha caído no fundo dele e era demasiado alto e demasiado escuro e eu estava sozinha e perdida lá em baixo.

Disseste-me simplesmente “Adeus”. Tu que nunca dizias adeus quando te despedias de mim. Nunca mais te encontrei, nunca mais nos falámos. Sei de ti de vez em quando pelos amigos que temos em comum, os tais laços que não são apenas nossos para desatar. Sei que não dizes o meu nome. Eu digo o teu constantemente. És a minha mágoa atravessada na garganta.

Se, por um lado, não têm conta as vezes que peguei no telefone para marcar o teu número – e sim, ainda o sei de cor – também não consigo contar todas as vezes que tive a certeza de que não podia fazê-lo porque tu és a única pessoa no mundo inteiro a quem não consigo perdoar. Não gosto desta palavra perdão, tem um quê de superior, de divino que não me agrada, mas é a única que me ocorre.

Tu, melhor do que qualquer outra pessoa neste mundo, sabias qual era o meu maior medo. Tu soubeste que esse medo se realizou há dois anos, em Dezembro. Soubeste de tudo e s não tiveste a mais pequena dificuldade em imaginar o meu sofrimento mas nunca me procuraste – como foste capaz? Eu não teria hesitado. Será que nunca exististe? Será que criaste um personagem só para mim, para me cativar? Não é possível porque nenhum personagem consegue ser tão incoerente, tão humano como tu eras! Eu precisei tanto de ti, chamei-te tantas vezes em espírito e tu nunca vieste, nem por um segundo, dar-me um abraço e dizer-me que ia tudo ficar bem – sim, porque se tu mo dissesses eu acreditava.

Porque te escrevo hoje é um mistério para mim. Talvez porque nos últimos dias tenha falado e pensado muito na amizade, talvez porque precise libertar espaço no meu coração para outras pessoas e tenha percebido que o teu espaço não pode ser desocupado. Talvez porque, neste momento, sejas tu quem precisa de mim e me chama em gritos mudos que eu pressinto mas aos quais não posso e não vou responder, a menos que me procures, a menos que me digas que também não te esqueceste de mim e todos os dias dizes o meu nome dentro de ti, embora não o consigas pronunciar.