26 novembro 2003

Os dias infelizes

Muito se fala em violência doméstica nos dias que passam. E é bom que se fale, porque há assuntos que apenas se esgotam quando deixam de existir e este ainda sobrevive, camuflado sob o medo, a decência e os bons costumes e uma certa ideia de que as mulheres devem obediência e respeito aos seus maridos. Não concordo com a obediência, como é lógico, mas o respeito, tal como o amor, é uma rua de dois sentidos: dá-se e recebe-se em igual medida, ou então depressa se esgota.

Falar sobre a violência entre o casal - tinha escrito "violência contra as mulheres" mas não podemos esquecer que a violência assume muitas formas e também há homens que são vítimas, embora estes casos sejam mais raros porque menos falados. Uma vez mais, é uma questão de costume: é mais facilmente aceite que uma mulher assuma uma posição de fragilidade. Se um homem confessar que é vítima de violência física ou psicológica, das duas uma: ou é olhado com desconfiança ou se torna alvo de chacota: "Então este gajo não tem mãos?"...

Como ia dizer, falar sobre a violência entre o casal é necessário e urgente. Pelas vítimas directas e pelas outras vítimas, as que poderão não sofrer as agressões na pele, mas sem dúvida as sofrem na alma. Filhos, pais, irmãos, amigos, todos são testemunhas silenciosas e impotentes pois o acto de coragem que é a denúncia cabe apenas à vítima directa. É preciso perder o medo, sussurram. É urgente denunciar os agressores, dizem. É necessário voltar a viver, gritam.

É tudo verdade, mas então, se todos reconhecem que a violência doméstica existe, se todos são (aparentemente) unânimes em afirmar que é preciso denunciar alto e bom som quem a pratica para acabar de uma vez por todas com a impunidade destes crimes que chegam por vezes ao assassinato, então porque é que assistimos, nestes estranhos dias que nos assombram, à inversão de posições em que a vítima é sempre prisioneira, quer permaneça em casa sem fazer a denúncia, quer decida fazê-la? Neste caso, é outro medo, talvez maior porque desconhecido, o medo de andar na rua, de ser apanhada por uma fúria agora maior porque acirrada, o viver num albergue ou em casa de familiares, num espaço alheio, até que o agressor seja levado à justiça e depois, voltar a viver numa prisão de medo porque a justiça não funciona, porque a máxima “entre marido e mulher, ninguém meta a colher” continua válida não apenas para o povo, mas também para os tribunais. Em contrapartida, o agressor é sempre livre. Livre de bater, de torturar, de aterrorizar, de matar.

Brecht disse que este é o tempo dos assassinos. O primeiro assassino é o silêncio. O segundo somos nós, agressores, vítimas e todos quantos sabemos que a violência existe e, mesmo assim, insistimos em virar as costas, encolher os ombros e seguir caminho, a assobiar para o ar o nosso incómodo. Não é nada connosco, logo não é problema nosso.