06 novembro 2003

Um livro

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Estha ocupava muito pouco espaço no mundo.

Depois do funeral de Sophie Mol, quando Estha foi Devolvido, o pai mandara-o para uma escola de rapazes em Calcutá. Não era um aluno excepcional mas também não tinha dificuldades.

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Estha acabou o liceu com resultados medíocres, mas recusou-se a ir para a Faculdade. Em vez disso, e para grande embaraço inicial do pai e da madrasta, começou a fazer a lida da casa. Como se, à sua maneira, tentasse ganhar o seu sustento. Varria, esfregava e lavava a roupa. Aprendeu a cozinhar e a comprar os legumes. Os vendedores no bazar, sentados atrás de pirâmides de legumes lustrosos e brilhantes, aprenderam a reconhecê-lo e atendiam-no por entre a algazarra dos outros clientes. Davam-lhe latas ferrugentas para ele guardar os legumes que escolhia. Ele nunca regateava. Eles nunca o enganavam. Depois de pesarem e receberem o dinheiro dos legumes, colocavam-nos na sua cesta de plástico vermelho (...) acrescentando sempre um ramo de coentros e um punhado de malaguetas de graça. Estha transportava-os para casa no eléctrico apinhado. Uma gota calada flutuando num mar de ruído.

Às refeições, quando queria alguma coisa, levantava-se e servia-se.

Quando o mutismo chegou, ficou e alastrou em Estha.

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Rahel entrou primeiro para a lista negra do Convento Nazaré, aos onze anos, quando foi apanhada do lado de fora do portão do jardim pela sua Chefe de internato a decorar com florinhas um poio fresco de bosta de vaca. Na Assembleia da manhã seguinte foi obrigada a procurar a palavra depravação no Dicionário Oxford e a ler o significado em voz alta (...) Seis meses depois foi expulsa após repetidas queixas de raparigas mais velhas. Era acusada (justamente) de se esconder atrás das portas e dar encontrões propositados às mais velhas. Quando foi chamada e interrogada pela Directora sobre o seu comportamento (com recurso a lisonja, cana e jejum), acabou por admitir que fizera aquilo para descobrir se os seios magoavam. Naquela instituição cristã, os seios não eram coisa reconhecida. Supostamente não existiam e, se não existiam, como é que podiam doer? (...)


Arundhati Roy, O Deus das Pequenas Coisas