10 março 2004

O castigo da nudez

Nas minhas breves aulas de catequese ensinaram-me que, após terem comido o fruto proibido, Adão e Eva conheceram a vergonha porque tomaram consciência da sua nudez. Ao que parece, depois de tantos milénios e mitos passados, a nudez continua a ser uma vergonha ou uma indecência, consoante a abordagem, mas dificilmente se consegue aceitar que seja uma coisa natural, o estado mais natural de cada um de nós, pois ninguém duvida que é assim que todos nascemos e que, salvo pormenores, todos somos anatomicamente iguais.

Pêro Vaz de Caminha refere-se aos genitais dos nativos da América como "vergonhas", mas logo a seguir diz que a sua nudez era tão natural que se tornava inocente. Será que é tudo uma "simples" questão de atitude? Pessoalmente acredito que sim. Cresci no meio de pessoas conservadoras, mas nunca tive qualquer pudor da minha nudez. Tenho um corpo igual ao de qualquer mulher. É o meu corpo, o único que tenho, aquele dentro do qual cresci e que me permite amar, abraçar, beijar, tocar, ver, sentir, cheirar, viajar, trabalhar, ler, enfim, fazer todas as coisas que gosto e preciso para viver.

Se o corpo é o recipiente que encerra a alma e a presença desta neste mundo é um aprendizado, tendo o corpo a dupla função de guardião e instrumento de apreensão do Conhecimento, como reclamam os budistas, então estou muito grata ao meu por tudo o que me tem permitido conhecer. Mesmo que pudesse, não o trocaria por outro porque qualquer outro corpo me seria estranho, mesmo que fosse mais conforme com os padrões convencionais de beleza.

Por tudo isto continuo sem perceber a vergonha, o castigo da nudez. Não quero chamar-lhe uma questão cultural, prefiro tratá-la como de "anti-cultura". Tapar a nossa nudez, ocultá-la, fazer as nossas crianças acreditar que se trata de algo vergonhoso, não será uma maneira de as limitar? De lhes implantar traumas e pudores desnecessários? De distorcer a pureza em mácula?

E se, bem vistas as coisas, a vergonha da nudez tem a mais a ver com o sexo do que com outra coisa qualquer, será que, ao considerarmos a nudez como território proibido não estamos também a rotular o acto básico, natural e necessário do sexo/amor como algo de vergonhoso? Não deixa de ser irónico que, ao criar tantos entraves e proibições, a sociedade condene a pornografia, por exemplo. Afinal em que ficamos? A nudez e o sexo são naturais e, como tal, não conhecem a vergonha ou, por outro lado, são coisas obscuras e deprevadas e, como tal, merecem castigo?

Será que, no fundo, tudo isto tem a ver apenas com uma interpretação deturpada do Génesis?