15 julho 2004

Dona Ana

Conheço a D. Ana desde que trabalho aqui. É uma senhora dos seus cinquenta e tal anos, cabelos ondulados e grisalhos, sempre em desalinho, olhos escuros e vivos, que viajam pelos nossos quando nos fala. A causa da vida da D. Ana são os animais. Pertence a várias instituições, recolhe animais abandonados e procura novas casas para eles. Os maus tratos para com os animais revoltam-na profundamente.

Ontem encontrei-a - já não a via há muito - e aproveitámos para pôr a conversa em dia. Tal como ela, eu também acredito que todos os animais têm direito à sua dignidade, a ser tratados com respeito por todos nós que somos, supostamente, racionais. A meio da conversa e depois de me ter contado a história de uma gata que tinha sido levada pelos donos ao veterinário para ser abatida não porque estivesse doente, mas porque tinha provocado um ataque de asma na criança da família ("no comments!"), a D. Ana disse-me que sabia o que muita gente pensava sobre ela.

"As pessoas julgam que, por gostar de animais e lhes dedicar tanto tempo me desiludi com as pessoas, mas não é verdade. Eu gosto muito das pessoas e também as ajudo, só que não quero que se saiba.". Contou-me então do seu orgulho maior, uma medalha que recebeu feita por crianças com atraso mental (que me perdoem os especialistas, mas não estou a par do termo politicamente correcto para designar esta realidade até porque, nestes casos, as palavras certas mudam com grande rapidez e querem-se sempre mais delicadas. Será para não melindrar as pessoas nessa situação e os seus familiares ou antes para não chocar contra as nossas cada vez mais duras sensibilidades?). Disse-me que guarda essa medalha juntamente com uma carta que as mesmas crianças lhe escreveram para lhe agradecer a ajuda que lhes dava e que era a esses dois objectos que ia buscar a coragem de cada dia.

É comum olhramos para pessoas como a D. Ana e pensarmos (o termo mais adequado será "julgarmos") que são pessoas frustradas, infelizes, desiludidas com a vida, a quem faltam afectos. Nunca imaginamos que, pelo contrário, possam ser pessoas tão cheias de Bem, que conseguem abarcar o mundo inteiro num só abraço e dispensar o mesmo tipo de atenção e cuidado a um estranho, a um animal, a uma árvore, enfim, a todas as coisas e criaturas quem compõem este mundo a que todos chamamos de "nosso" mas que poucos tratam como tal.