15 dezembro 2005

Vergonhoso

Há mais uma criança vítima de negligência, maus tratos e abusos (será que não é tudo o mesmo?). Bom, na verdade, de ontem para hoje haverá mais do que uma criança em risco de vida, mas só uma chegou aos jornais e à televisão. Tem pouco mais de um mês de vida e, se sobreviver, ficará com danos neurológicos permanentes.

Grupos de trabalho, "taskforces" de médicos, psicólogos, políticos, assistentes sociais e o diabo a sete estão constantemente a ser formados e escangalhados, partidos e repartidos, subdividos e comissões e comités, cheios de teorias e burocracias, em múltiplas reuniões, realizadas em salas discretas, com os intervenientes sentados em cadeiras confortáveis, com direito a café e bolinhos. Sem nunca conhecer os casos, as crianças, as famílias os lugares onde estas coisas acontecem.

E reunem e reunem e reunem uma e outra e ainda outra vez e emitem relatórios e nas universidades as teses saltam como pipocas no tacho e gastam-se resmas e resmas de papel, tudo para chegar à mesma brilhante conclusão: é a miséria. Ai! Miséria não, porque a palavra não é politicamente correcta desde que chegámos à (verdadeira) Europa.

Em vez de miséria, vamos antes chamar-lhe "as más condições sócio-económicas". São estas as grandes responsáveis pelos monstros que vivem no meio de nós e que são capazes de maltratar uma criança. Na minha modesta opinião, não é a miséria que gera pessoas malformadas, não é a miséria a responsável pelas doenças mentais. Há pessoas malformadas (e crianças maltradas, que um dia mais tarde provavelmente serão adultos malformados...) e doentes mentais em todas as classes sociais, simplesmente esses sabem disfarçar os abusos e, regra geral, conseguem sair impunes.

São os pobres que atraem as atenções, porque lhes falta a subtileza para esconder os crimes e as vergonhas. Mas com certeza que não agem assim por serem pobres. O meu pai foi criado descalço até aos 12 anos, idade em que começou a trabalhar e conseguiu comprar o primeiro par de sapatos. Trabalhou toda a vida, tirou a 4ª classe depois de adulto, morreu pobre e a mim e à minha irmã nunca nos faltou nada nem nunca houve, da parte dele, um toque que não fosse o de um pai.

Então porquê? Não sei, mas de uma coisa estou certa. Esta criança deu entrada duas ou três vezes antes no hospital, com sinais evidentes de maus tratos e continuou a viver com os pais. Se lhes tivesse sido retirada da primeira vez, hoje poderia estar a viver numa instituição sobrelotada, mas pelo menos não estaria em coma.

Todos falhamos e temos esse direito, mas só até um determinado limite. Pais e mães não podem falhar assim. E as instituições que supostamente nos protegem, muito menos.