21 março 2006

Dias "de"

Sou contra os dias “de”. Primeiro, porque se uma causa for importante o suficiente para ter um dia “de”, então a sua importância ultrapassará certamente esse dia e não vale a pena evocar uma coisa que é omnipresente. Segundo, porque o facto de existirem dias “de” tudo e mais alguma coisa só provoca excesso de ruído no calendário. Se a reflexão é um dos objectivos destes dias, então passa despercebida no meio de tantos dias “de”, de tantas efemérides, feriados nacionais ou locais, o dia de receber o ordenado, o dia da consulta com o médico de família, etc., etc. São coisas a mais em que reflectir, não há cabeça para tanto, não há vontade ou convicção que resistam.

Na verdade, os dias “de” funcionam ao contrário do que se pretende. Quem dá mais pelo dia dos namorados é quem não tem namorado e se vê mergulhado numa enxurrada de rosas encarnadas, cartões cheios de coraçõezinhos e ursinhos de peluche com “I love you” bordado no peito.

Quanto ao dia da mulher, por exemplo, acho-o do piorio. Sinto-me desigual o suficiente para precisar de um dia que me reabilite, que me faça lembrada neste mundo dos homens. Quando me vêm oferecer flores nesse dia, tenho vontade de as enfiar pelas narinas abaixo de quem mas dá. Além disso, flores para mim são cravos encarnados. Aprendi a gostar deles com o meu avô – sim, era comunista - e ainda hoje acho que nenhuma outra flor enche tanto os olhos e o coração como um ramos de cravos encarnados, carnudos, e, de preferência, oferecidos “porque sim” e não porque os homens, lá do alto da sua infinita misericórdia, resolveram agraciar as mulheres com um dia inteirinho só para elas, 24 horas dedicadas em exclusividade – mas só na agenda, claro, na vida real continua tudo na mesma.

Mas o pior dos dias “de” é para mim o dia do pai. Não que alguma vez tenha festejado esse dia com o meu pai, mas agora que ele já não está aqui, sinto-me mal ao ouvir falar em dia do pai porque nunca mais vou poder oferecer-lhe seja o que for, nunca mais vou poder almoçar com ele, nunca mais vou passar um dia que seja com ele, nunca mais, nunca mais tudo e nunca mais nada. E essa é a expressão mais dura para mim, a que não tem retorno nem solução.

E, de repente, aquele dia que não significava nada, passa a ser uma tortura. Não que eu me lembre mais do meu pai, até porque não se pode lembrar quem nunca nos sai do pensamento, mas nesse dia sinto-me mais órfã.

Ontem, durante um telejornal qualquer, tropecei numa reportagem sobre uma lápide que foi descerrada em memória de todos os agentes da PSP que morreram em serviço (as lápides são como os dias “de”, completamente inúteis, quando não têm o efeito contrário ao que se pretende). Perguntavam ao filho de um polícia morto no final do ano passado como tinha sido este dia do pai. Não pude deixar de pensar que aquela pergunta, além de cretina, devia de ser particularmente dolorosa e que o rapaz foi extremamente bem educado quando respondeu que tinha ido visitar a campa do pai. Eu não teria sido nem de perto tão polida, mas deve de ser defeito meu, com certeza.