17 novembro 2003

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Tal como aconteceu aquando da Acção Leucemia, tive uma grande dificuldade em encontrar a abordagem mais correcta para falar desta questão, desta guerra civil como lhe chamam – infelizmente, a figura não podia ser mais apropriada. Se estamos demasiado próximos da causa, tendemos a ser apaixonados e arrebatados no discurso, se, pelo contrário, nunca fomos tocados por esta dor (embora não consiga imaginar alguém a quem o tema possa deixar indiferente), corremos o risco de ser demasiado distantes.

Até à data, não sofri nenhum acidente, nenhum dos meus familiares ou amigos passou por essa experiência. Já perdi pessoas queridas, mas não desta maneira estúpida, súbita, inexplicável. Nenhuma morte faz sentido e todas são inesperadas e brutais, mas perder alguém que se ama num acidente deve ser muito pior do que quaisquer palavras possam descrever.

Não me apetece dissertar sobre as causas dos acidentes nas estradas portuguesas. Mau estado das estradas? Talvez em alguns casos. Má vigilância e legislação branda e omissa? Sim, mas que raio de seres somos nós que precisam ser constantemente vigiados e sentir a Lei como uma ameaça em vez de uma protecção? Comportamento irresponsável por parte de alguns condutores? Sim, inclino-me mais para este motivo, embora não consiga perceber que gozo retiram algumas pessoas de desligar as luzes e acelerar por uma via pública em alta velocidade, ou andar em autoestradas em contra-mão, ou simplesmente acelerar o motor ao limite indiferentes ao facto de que não estão sozinhos na estrada.

A coisa mais parecida com uma explicação para estes casos foi dada há uns anos pelos realizador David Cronenberg no filme “Crash”. Um instinto, básico, primário, directamente ligado à libido, ao prazer e afirmação sexual. O ser mais do que o resto do mundo, ter a nossa vida e as vidas alheias nas mãos e sacrificá-las ou poupá-las conforme a nossa vontade. Será qualquer coisa parecida com isto? Talvez, mas hoje não importa falar dos assassinos, mas das vítimas. Dos que deixaram de viver, daqueles para quem a vida nunca mais pode ser igual e dos outros, os que não estavam no carro ou na rua, mas para os quais a vida terá sempre uma sombra de morte.

Por todos eles é nosso dever celebrar a vida, ontem, hoje e sempre no futuro. Celebrá-la cada vez que nos apetecer carregar um pouco mais no acelerador, porque estamos entediados, zangados ou simplesmente porque comprámos um carro novo e queremos explorá-lo e exibi-lo. Celebrar a vida pensando duas vezes antes de nos sentarmos ao volante depois de termos bebidos uns copos, apesar de nos sentirmos bem.

Há muito mais que gostaria de dizer mas não consigo. É difícil trocar sentimentos por palavras, fica-se sempre a perder.